"A terra é circular. O sol é um disco. Onde está a dialética? No mar. Atlântico, mãe. Como eles puderam partir daqui para o mundo desconhecido? Aí, eu chorei de amor pelos navegadores, meus pais. Chorei por tê-los odiado. Chorei por ainda ter mágoa desta história. Mas chorei fundamentalmente diante da poesia do encontro do Tejo com o Atlântico, da poesia da partida para a conquista. Eles o fizeram por medo, também, e talvez tenham chorado diante de todas as belezas, além do mar, Atlântico. Oh paz infinita poder fazer elos de ligação numa história fragmentada. África e América, e novamente Europa e África. Angolas, Jagas, e os povos de Benin, de onde veio a minha mãe. Eu sou atlântica".
Beatriz Nascimento, 1989
“Mundial”, “internacional”, “global” e “transnacional” são alguns dos termos que designam espaços de experiência e horizontes de expectativa de interação humana. Se o “mar Oceano” dos primeiros navegadores se fez “Atlântico” na viragem dos anos mil e seiscentos, foi ao final dos anos mil e setecentos que a intensificação das circulações e conexões e a construção de uma tênue identidade política ligada às revoluções liberais alçaram o emprego do termo “transatlântico” ao primeiro plano. Um neologismo que parece enfatizar o espaço geográfico e metafórico do Atlântico como território marcado por diásporas, trânsitos e transações: suas veias, suas rotas. Aspecto que se acentuou ainda no século XX, no entre-guerras, quando as intensas transformações técnicas e a viragem geopolítica ampliaram a escala e a intensidade dos contatos, dos estranhamentos e da necessidade de negociação. É justamente o intuito de pensar rotas, derivas, impasses e mediações no espaço transatlântico para construir uma história da crítica da arquitetura o que mobiliza o II colóquio crítica . mídias . memória | diálogos transatlânticos em arquitetura que acontecerá em outubro de 2024 no Centro de Estudos Arnaldo Araújo da Escola Superior Artística do Porto, em Portugal.
O encontro proposto busca aprofundar debates apresentados na primeira edição do evento ocorrido em 2022, no Rio de Janeiro, Brasil. Sobretudo, em uma de suas mesas, “diálogos transatlânticos”, em que se buscou reconstituir “[...] as nebulosas que os atores da crítica da arquitetura – nas suas constelações sociais, geográficas e intelectuais – foram tecendo” (FIGUEIREDO, no prelo). Mesa em que “diferentes mecanismos de mediação da arquitetura (traduções, periódicos, publicações e reuniões internacionais) deixaram de ser considerados como meros veículos de circulação de informação, modelos ou imagens, para passar a ser observados como [...] espaços de produção, negociação e conhecimento multidirecional, passíveis de conferir tangibilidade ao exercício da crítica [...], entendida aqui como prática transnacional [...] [e] como produto de complexos processos de ‘transculturalização’” (FIGUEIREDO, no prelo).
Contudo, após o evento, à medida que preparamos a edição dos anais do Colóquio, no qual incluímos uma entrevista com Margareth da Silva Pereira (no prelo), a necessidade de revisitar o debate de maneira mais expandida se acentuou. Amparada por seu modo de pensar por nebulosas, Margareth da Silva Pereira nos provocava a pensar que “a operação crítica se dá no momento lacunar, porque ela ocorre em instantes de incerteza. Ou seja, ela é sempre uma interrogação, uma dúvida. Significa que o que estava antes não satisfaz e o que vai acontecer depois também não está sob controle”. Ainda Margareth da Silva Pereira nos convida a aproximar a operação crítica da necessidade de “agir por ensaio”, “uma configuração, possível, provável... [...] agindo no abismo, agindo nesse momento abissal, nesse momento lacunar que é a reflexão em ato. Trata-se da reflexividade, prática que se exige do historiador em relação ao seu objeto de estudo e que vem sendo tematizada por inúmeros autores desde os anos 1960. Resumidamente, trata-se de se colocar em permanente estado de interrogação”.
Em março de 2023, já construindo pontes para II colóquio crítica . mídias . memória | diálogos transatlânticos em arquitetura, realizamos a jornada de estudos "Para ligar dois hemisférios: Os mecanismos da mediação crítica na cultura transatlântica". Neste encontro, pudemos discutir como a crítica foi “[...] um mecanismo crucial na estruturação de uma rede de relações, contato e permuta entre intelectuais ibéricos e sul-americanos que extravasou as fronteiras físicas e imaginárias que diferentes tensões geopolíticas ajudaram a erguer e a cristalizar” (FIGUEIREDO; PEIXOTO, 2023). Ainda nessa jornada de estudo, durante a fala de abertura do evento, Priscilla Peixoto fez questão de fazer referência à declamação (aqui em epígrafe) que Beatriz Nascimento fez no filme Ôrí (GERBER, 1989). Priscilla Peixoto explicou que o reencontro com o texto de Beatriz, diante do qual as incertezas e as dúvidas se perspectivam (hierarquizam) e se assentam, a alertou sobre a necessidade de se enfrentar, sem simplificar, as relações de encontro e de troca que se estabeleceram nas rotas da crítica transatlântica. Essas palavras a ajudaram a lembrar que abordar a crítica transatlântica não significa tentar construir meios para uma história global, nem uma única história em comum, mas sim várias histórias e seus múltiplos pontos de compartilhamento. Ou seja, trata-se de buscar histórias em fragmentos, um mosaico de elementos que se conectam, mas que também se afastam, como figuras de um caleidoscópio. Configurações instáveis como as nuvens que Margareth da Silva Pereira evoca ao interpretar os céus da história no projeto “nebulosas do pensamento urbanístico”.
O II colóquio crítica . mídias . memória | diálogos transatlânticos em arquitetura parte desse processo, algo entre as questões trazidas pela entrevista com Margareth da Silva Pereira e a declamação realizada por Beatriz Nascimento. Busca pensar que o próprio oceano Atlântico é, ele também, um território crítico que nos alerta para um modo de lidar com as incertezas do futuro. Indica a necessidade da ação, da operação crítica, do agir por ensaio e, ao mesmo tempo, demanda cuidado para que não seja aplainada a complexidade das relações constituídas no seu transitar. Afinal, “[...] falar de culturas atlânticas é, com muita frequência, falar de corpos desterrados e, em exílio, que muitas vezes encontram na transculturação um (ou o único) modo de existir (resistindo)” (PEIXOTO, 2023). Assim, a proposta do colóquio é um convite a uma abordagem historiográfica que enfatize o transitar territórios na modernidade. Um desejo de construção do conhecimento sobre a crítica como prática de identificação, tensionamento e mediação de culturas arquitetônicas diversas. Culturas críticas que, ao entrarem em contato umas com as outras, se modificam a partir de perdas, seleções e redescobertas, criando algo que não é nem mera junção, nem um mosaico, mas sim uma síntese nova e criativa.